Nem os dogmas da biologia resistem totalmente à evolução científica. Uma dessas leis pregava que a receita de qualquer criatura, das mais simples às complexas, dependia da mesma fórmula: os genes empacotados no DNA emitiam as ordens a serem lidas e traduzidas em forma de proteínas para a construção das células e o disparo das reações químicas que fazem a vida acontecer. Ocorre que o processo não é tão simples e linear assim. Há outra sigla, extremamente relevante nesse enredo, que, agora devidamente decifrada, está ajudando a reescrever a história da medicina: o RNA. Mas melhor seria empregar o plural para tratar da diversidade e especificidade dessas moléculas, que vêm ganhando protagonismo nos laboratórios de pesquisa e prometem revolucionar exames e tratamentos. Bem-vindo à era dos RNAs.
A coroação se deu no Prêmio Nobel de Medicina deste ano, concedido aos americanos Victor Ambros e Gary Ruvkun pela descoberta dos micro-RNAs, pequenas partículas que influenciam a regulação dos genes e dão as caras em espécies tão diferentes como vermes minúsculos e seres humanos. Hoje grupos de estudos avaliam a perspectiva de utilizar essas pecinhas, desconhecidas antes dos anos 1990, como biomarcadores para diagnóstico de doenças e terapias contra o câncer e problemas cardíacos e renais.
Trata-se de um novo e promissor capítulo nessa epopeia de avanços médicos, que já nos brindou com as vacinas de RNA mensageiro contra a covid-19, ferramenta crítica para deter a pandemia mundo afora. Não à toa, os dois pesquisadores responsáveis pelos achados que abriram caminho aos imunizantes dividiram a láurea da academia sueca. A tecnologia, baseada nesse outro tipo de RNA, não só poderá render uma próxima geração ainda mais exitosa de vacinas, como também medicamentos contra tumores e outras enfermidades. O futuro, na realidade, já começou. Está disponível no Brasil um remédio semestral para controle do colesterol cujo princípio ativo é um RNA de interferência (sim, outra variante da molécula). Definitivamente, o DNA não está mais ditando sozinho as regras do jogo genético. Sorte da humanidade.
Publicado em VEJA de 20 de dezembro de 2024, edição nº 2924




