Top Gun Maverick só deixou no ar uma pergunta: Iceman ou Maverick é o melhor piloto?
No início de 1987, John Huston, em seus 80 anos, sabia que ia morrer. Coberto de tubos para poder respirar, incapaz de se mover de sua cadeira de rodas, falando com os atores por um microfone, era perfeitamente consciente de que sua adaptação de Os Vivos e os Mortos seria seu testamento para o mundo, sua visão final da vida quando já estava se aproximando da beira do precipício. Um a um, todos nos convertemos em sombras. Um último plano do céu. Uma lembrança eterna. Não é o único exemplo de um artista querendo se despedir de seu público, é claro, mas é inevitável que seja o primeiro que venha à mente. Pelo menos, até o falecimento de Val Kilmer em abril deste ano.
Em 2015, Val Kilmer foi diagnosticado com câncer depois de perder a voz antes de uma apresentação da peça Mark Twain. Como consequência das operações que fizeram em sua traqueia, perdeu a voz quase por completo, e instalou um dispositivo elétrico que lhe permitia falar com um tom mecânico e monótono. Isso não o impediu de continuar atuando ao longo dos anos em filmes bastante esquecíveis como Boneco de Neve ou Paydirt.
Vendo que seu cachê baixava e que sua saúde piorava, Kilmer decidiu se despedir dos espectadores com seu documentário Val, onde mostrava seu lado mais humilde, doloroso e humano. Muitos, incluindo provavelmente ele mesmo, acreditaram que este era seu canto de cisne, mas ainda lhe restava um último adeus em grande estilo: Tom Cruise lhe ofereceu a oportunidade de retomar um de seus papéis mais queridos, o de Iceman, em Top Gun: Maverick. E depois de anos tentando que não se esquecessem dele nesta sequência, não podia desperdiçar a chance.
Em 2021, Kilmer, olhando para o futuro, trabalhou com a Sonantic, uma empresa de IA, para recriar sua voz digitalmente, escolhendo a que mais se parecia com a sua entre 40 opções possíveis. A ideia, de fato, era utilizá-la nesta sequência (que, no final das contas, foi o único filme em que poderia tê-lo feito), mas Joseph Kosinski, o diretor, decidiu fazer algo infinitamente mais humano: deixar que o público o escutasse de verdade uma última vez, desligando sua caixa de voz, rejeitando a inteligência artificial e, simplesmente, aumentando a clareza de suas palavras. Fizeram-lhe um favor.
Esse último diálogo, cara a cara com Maverick, é a aceitação de sua própria mortalidade (“É hora de deixá-lo ir”, escrevia no computador), sua necessidade de dar um último presente ao público, fazendo uma piscadela à sua carreira. Kilmer sabia perfeitamente que depois de Top Gun: Maverick, desprovido de todo o teatro que havia montado ao seu redor, não podia voltar à série B, que era um adeus perfeito, um ponto final para se dedicar, pelo tempo que lhe restasse, a pintar e a desfrutar, dentro do possível, de seu legado longe dos sets.
Paramount Pictures
Anos depois de seu falecimento, não lembraremos dos filmes de ação de baixa qualidade onde Kilmer era dublado por outra pessoa, nem de sua participação especial em O Império (do Besteirol) Contra-Ataca: Reboot, mas sim desta cena, com voz rouca, onde foi suficientemente corajoso para levar seus problemas da vida real à ficção, eliminando o artificial, deixando apenas a realidade, permitindo que seu inevitável futuro fosse mostrado.
É preciso ter um tipo de dignidade muito específica para se despedir do olhar público mostrando sua realidade, deixando de aparentar fortaleza, assimilando os últimos passos do caminho. Val Kilmer teve o privilégio de poder fazê-lo e de deixar uma marca indelével pelo caminho, um post-scriptum com o qual soube enquadrar toda sua carreira. E nem sempre é tão fácil caminhar seus últimos metros com a frente erguida.
