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Vilarejo do Ceará vira ‘território-fantasma’ após expulsão de moradores por facções

Um vilarejo inteiro do interior do Ceará se tornou o retrato da violência imposta pelo crime organizado. O distrito de Uiraponga, em Morada Nova, a 167 km de Fortaleza, vive há mais de dois meses uma rotina de silêncio e medo. O que antes era uma comunidade com cerca de 300 famílias virou um território fantasma, marcado pelo êxodo forçado de moradores após uma violenta disputa entre facções criminosas.

Casas foram abandonadas, comércios fecharam as portas e ruas que antes serviam de ponto de encontro para vizinhos agora permanecem desertas. “Aqui só ficou quem não teve para onde ir”, relatou um morador, sob anonimato, temendo represálias.

A prefeitura de Morada Nova reconheceu oficialmente a escalada da violência em decreto. Entre as medidas, suspendeu o funcionamento do posto de saúde local e transferiu alunos da rede municipal para outras localidades. O documento evidencia a gravidade da situação, algo pouco comum em distritos do interior.

O governo do Ceará, por sua vez, afirma que realiza operações policiais na região para tentar conter a criminalidade e garantir a segurança dos moradores que resistem em Uiraponga.

Para o especialista em segurança pública Raul Thé, o que ocorre em Uiraponga não é um caso isolado. “A disputa de facções no distrito representa o que está acontecendo em todo o Ceará. A presença das organizações criminosas se espalhou pelo Estado e exige uma postura firme, de resolução definitiva, não apenas medidas emergenciais”, avalia.

Rompimento e disputa

Por trás desse cenário de violência, pelo menos três criminosos aparecem como figuras principais na expulsão dos moradores do vilarejo. José Witals da Silva Nazário (“Playboy”), Márcio Jailton da Silva (“Piolho”) e Gilberto de Oliveira Cazuza (“Mingau”). O último está foragido.

José Witals é apontado pela investigação como um dos chefes da facção Terceiro Comando Puro (TCP), que ordenou a expulsão dos moradores do local. Já Márcio Jailton, seria um dos comparsas que executava as ordens de Witals. Ele é investigado por oito assassinatos ocorridos no município.

Conforme o inquérito policial ao qual o onde tivemos acesso, o conflito na região começou após José Witals sair da facção Guardiões do Estado (GDE), romper com seu antigo aliado Gilberto de Oliveira Cazuza e se aliar ao TCP.

Com isso, Witals “Playboy” iniciou uma campanha de extrema violência para tomar o controle territorial de Uiraponga, localidade historicamente dominada por Gilberto “Mingau”, que está foragido.

“A atuação do grupo liderado por Witals não se limitou a ataques contra membros da facção rival, mas se voltou deliberadamente contra a população civil, utilizando a expulsão em massa e a imposição do medo como estratégia de domínio, em uma clara afronta à soberania do Estado e aos direitos fundamentais mais básicos dos cidadãos, sendo Márcio Jailton da Silva um de seus comparsas”,
diz um trecho do documento.

Ainda conforme as investigações, o grupo de Witals tinha organização e divisão de tarefas, com a existência de “soldados” responsáveis pelas execuções e ameaças diretas aos moradores do vilarejo.

Panorama dos homicídios / CVLIs no Ceará

“CVLIs” = Crimes Violentos Letais e Intencionais — inclui homicídio doloso, feminicídio, latrocínio, lesões seguais de morte.

A prefeitura de Morada Nova não comenta a violência em Uiraponga, porém, no dia 1º de agosto, a administração municipal publicou um decreto reconhecendo “situação anormal e emergencial” no distrito, por prazo indeterminado.

Conforme o documento, assinado pela prefeita Naiara Carneiro Castro (PSB-CE), a atuação de facções criminosas, com ameaças generalizadas à população e abandono forçado de imóveis por diversas famílias, comprometeu a regularidade da prestação dos serviços básicos.

“Considerando que escolas, postos de saúde e outros equipamentos públicos interromperam suas atividades por falta de segurança, prejudicando o acesso da população a serviços essenciais. […] Considerando ainda que a situação também compromete a regularidade de serviços básicos como limpeza pública, iluminação, coleta de resíduos, infraestrutura, fiscalização, transporte de resíduos e atendimento social, demandando ações imediatas de reorganização administrativa”, diz um trecho do documento.

José Witals foi preso em 28 de julho deste ano, em um imóvel na cidade de São Paulo, onde estava escondido.

O criminoso, que já tinha uma extensa ficha criminal com três passagens por homicídio doloso, além de antecedentes por roubos, receptação e tráfico de drogas, foi localizado após troca de informações entre equipes da Polícia Civil do Ceará com apoio das forças de segurança de São Paulo.

Um dia depois da captura de Witals, os policiais também prenderam Márcio Jailton, em Morada Nova, durante o cumprimento de um mandado. No momento da captura, os agentes apreenderam um revólver municiado que estava escondido embaixo de um colchão.

Durante o depoimento, Márcio admitiu que comprou a arma para se defender, “tento em vista que ultimamente a região estava bastante perigosa”. Ele já tem antecedentes por roubo e é investigado por homicídios.

Mais procurados

Gilberto de Oliveira Cazuza ("Mingau") figura na lista dos criminosos mais procurados do Ceará. — Foto: SSPDS/ Reprodução

Gilberto de Oliveira Cazuza (“Mingau”) figura na lista dos criminosos mais procurados do Ceará. — Foto: SSPDS/ Reprodução

A polícia ainda tenta localizar e prender outros envolvidos na escalada de violência em Uiraponga, entre eles Gilberto “Mingau”, que figura na lista de mais procurados do Ceará. Ele é considerado um indivíduo de alta periculosidade.

Decreto da prefeitura

O decreto autoriza, entre outras medidas, a realocação temporária de alunos da rede municipal para outras unidades seguras, além da transferência dos atendimentos de saúde para unidades em funcionamento regular, com garantia de acesso da população afetada.

Além de ser integrante de organização criminosa com atuação na região do Vale do Jaguaribe, tem antecedentes criminais por homicídio e tráfico de drogas.

Gilberto está com seis mandados de prisão em aberto. A polícia oferece uma recompensa de R$ 7 mil para informações que levem à localização do criminoso.

“Este decreto entra em vigor na data de sua publicação e permanecerá vigente enquanto perdurar a situação que compromete a segurança pública, a integridade da população e a continuidade dos serviços essenciais no território do Distrito de Uiraponga”, segundo consta do decreto.

AnoNº de CVLIs / Homicídios aproximadosTendência / Observações
2013~ 4.473 homicídios.
2014~ 4.626
2015~ 4.163
2016~ 3.642
2017~ 5.433 homicídios, pico histórico para o período mais violento registrado.
2018~ 4.900 homicídios
2019~ 2.417 homicídios (queda expressiva)
2020~ 3.992 homicídios — elevação novamente.
2021~ 3.471 homicídios
2022~ 3.030 homicídios
2023~ 2.992 homicídios (ligeira queda em relação a 2022)
2024~ 3.272 CVLIs — aumento de cerca de 10,16% em relação a 2023.

Algumas outras estatísticas e tendências

  • Em 2024, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes subiu de cerca de 32,3 (em 2023) para 35,4 no Ceará. Gazeta do Ceará
  • O Ceará foi destacado como o estado com a maior taxa de homicídios dolosos por 100 mil habitantes em 2024. CN7 Ceará News+1
  • Apesar do aumento em 2024, os cinco primeiros meses de 2025 mostraram queda nos homicídios (CVLIs) de 17,7% no Ceará, comparado ao mesmo período de 2024. Portal GCMAIS
  • Em abril de 2025, os roubos (Crimes Violentos contra o Patrimônio, CVPs) tiveram queda de ~26,8% em todo o estado, comparando janeiro-abril de 2025 com o mesmo período de 2024. Fortaleza teve queda maior (~29,5%). SSPDS
  • Prisões de suspeitos de homicídio aumentaram ~24,9% nos cinco primeiros meses de 2025 em comparação com 2024. SSPDS+1
  • Prisões de pessoas ligadas a facções criminosas também tiveram aumento (≈ 44-52%) nos primeiros meses de 2025. O Estado CE+2Diário do Nordeste+2

Análise: o que esses dados indicam

A partir desses números, algumas conclusões e hipóteses que ajudam a entender a situação como a de Uiraponga:

  1. Ciclos de aumento e queda
    Os homicídios não têm se mantido em tendência linear. Tivemos picos fortes (por exemplo 2017), depois quedas (2019-2023), mas 2024 representou uma reversão parcial dessa queda. Isso indica que políticas de segurança, repressão, presença policial etc., podem funcionar, mas que são frágeis diante de fatores que retornam ou se intensificam (como disputas entre facções).
  2. Facções criminosas como fator relevante
    Os aumentos recentes em homicídios, sobretudo em 2024, parecem estar associados à escalada de conflitos entre facções. O aumento das prisões de membros de facções sugere que o Estado está reagindo, mas a disputa territorial gera episódios graves, deslocamentos, medo, impactos regionais (como Uiraponga).
  3. Regionalização da violência
    A violência não se distribui uniformemente. Áreas da capital, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), interior Norte, interior Sul têm comportamentos distintos. Algumas regiões recuaram em homicídios no início de 2025; outras tiveram piora. Isso indica que soluções precisam ser adaptadas localmente.
  4. Repressão + policiamento não bastam sozinhos
    Apesar do crescimento das prisões, isso por si só não garante permanência da queda nos homicídios. É necessário combinar isso com políticas sociais, prevenção, ocupação de territórios, serviços básicos, reconstrução comunitária.
  5. Jan-mai-2025 mostra esperança, mas é cedo para garantir reversão
    A queda de ~17,7% nos homicídios nos primeiros cinco meses de 2025 é um sinal positivo. Se mantido, pode significar retorno a níveis mais baixos. Mas o fato de 2024 ter tido aumento requer cautela: é preciso sustentar a tendência e evitar recaídas.

Implicações para Uiraponga e distritos semelhantes

  • Quando há disputa de facções em regiões mais remotas, com menor presença estatal, esses locais tendem a sofrer os piores impactos: abandono, êxodo, insegurança, desmonte de serviços públicos.
  • A escalada da violência em 2024, mesmo que em 2025 haja sinais de queda, pode se manifestar justamente nessas áreas mais vulneráveis primeiro, pois elas têm menos infraestrutura, menos policiamento, menos visibilidade.
  • O progresso recente (mais prisões, queda de roubos e homicídios em certas regiões) mostra que intervenções funcionam — mas exigem constância, coordenação entre esferas de governo, investimento social, e atenção específica para localizações isoladas.

O que diz o Estado

A Secretaria da Segurança Pública do Estado do Ceará informou que desde que tomou conhecimento das ameaças ocorridas no distrito de Uiraponga vem realizando ações para prender tanto os mandantes, quanto os executores dos crimes na região.

“Além do trabalho investigativo da Polícia Civil, equipes da Polícia Militar ocupam por tempo indeterminado a região e atuam realizando operações de saturação para reforçar a segurança da área”, disse a Secretaria da Segurança.

Conforme a pasta, no dia 1º de setembro foi realizada uma operação para combater a atuação de grupos criminosos atuantes em Morada Nova e nos municípios de Mauriti, São João do Jaguaribe, Tabuleiro do Norte, Alto Santo e Limoeiro do Norte.

Durante a ofensiva, nomeada de operação “Regnum Fractus”, foram cumpridos, ao todo, 11 mandados de prisão preventiva e 22 mandados de busca e apreensão domiciliar, que resultaram na apreensão de aparelhos celulares.

Ainda segundo a Secretaria, o policiamento na região é realizado diariamente em todos os distritos e na sede do município, com equipes do Policiamento Ostensivo Geral (POG), da Força Tática (FT) e equipes do Comando de Policiamento de Rondas de Ações Intensivas e Ostensivas (CPRaio).

Além disso, o distrito de Uiraponga conta com um posto do Comando Tático Rural (Cotar), que possui uma viatura de Força Tática atuando 24 horas por dia. “Os crimes na região são investigados pela Delegacia de Polícia Civil de Morada Nova”, informou.

Já o Ministério Público do Ceará (MPCE), disse que desde julho acompanha o caso e, em articulação com as Forças de Segurança, atuou para implementar medidas de proteção da comunidade e de enfrentamento à situação, que resultaram em prisões de suspeitos, instalação de base da Polícia Militar no distrito e envio de tropas do Batalhão de Choque.

“O Ministério Público segue trabalhando em conjunto com a Defensoria Pública do Estado, as Polícias Civil e Militar e a Prefeitura para garantir a retomada da normalidade dos serviços públicos e a volta dos moradores, além da rigorosa investigação dos crimes registrados no local. O MP do Ceará reafirma o compromisso institucional com a defesa da ordem jurídica, da segurança pública e dos direitos fundamentais da população atingida”,
disse o MP em nota.

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